sábado, 4 de agosto de 2018

Castildelgado e Grañón


Castildelgado
Menos de dois quilômetros depois, cheguei no minúsculo povoado de Castildelgado. Logo na entrada, vinha uma senhora, já bastante idosa, magrinha, caminhando rápido do outro lado da rua, e perguntei qual a direção eu tinha que tomar para seguir o Caminho. Ela parou com a mão na cintura e fez um gesto pedindo para eu me aproximar. Andei um pouco na direção dela e parei no meio da rua, esperando a explicação. Muito séria e calada, ela repetiu o gesto, como quem diz: “Chega mais”. Cheguei até no limite do meio fio e pensei: “Será que ela é doida? Se ela não falar agora, eu vou embora! Não vou subir nesse meio fio”. Mas ela apontou para a calçada, me ordenando que subisse. Curioso pra ver onde ia chegar aquele encenação, subi, e ela, apontando para a estra de onde eu tinha chegado, perguntou:
- Porque você veio por esse caminho?
E eu respondi:
- Porque achei que fosse mais perto.
- Você passou pelo caminho errado. Tem um caminho melhor, que não passa pela estrada de carros. O caminho certo é pelo cemitério, onde não tem perigo de você ser atropelado. Por onde você veio é perigoso. Peregrino não deve andar nessa estrada.
De fato, eu tinha visto uma placa lá atrás, indicando duas alternativas. Mas eu acho que escolhi a que indicava distância menor.
Supondo que ela fosse uma brincalhona, eu fiz uma careta de espanto e caçoei:
- Não! Isso é loucura! Eu tenho medo de cemitério. Está cheio de mortos. Vai que um levanta e pula na minha frente e BUUUH.
Ela apenas ameaçou um sorrisinho meio sarcástico, mas sem perder o ar de autoritária, me pegou pelo braço e foi me puxando, dizendo:
- Venha. Vou e mostrar por onde você tem que ir agora.
E eu, pra manter o clima, perguntei:
- Por aí não tem cemitério, não, né?
Ela só me olhou e continuou me puxando e falando:
- Não é para ir por onde você estava indo. Venha, vou te mostrar a direção certa.
E lá vou eu pela cidade adentro, atravessando aquelas ruazinhas estreitas, puxado por aquela velhinha acelerada e mandona.
- Você vai descer por ali! Lá na frente tem a saída! Siga por lá. Não vire à direita, senão você vai sair na estrada dos carros!
E, toda autoritária, soltou meu braço e apontou:
- Vá!
- Mas eu quero comer alguma coisa primeiro!
De novo, ela me pegou pelo braço.
- Venha!
E, com aquele passo miúdo e acelerado, começou a me puxar de novo, para outra direção. A essa altura eu já estava dando risadas e ela, séria, continuava me guiando pelo braço.
- Por aqui tem um supermercado.
Ao virar a esquina, diante de uma portinha pequena de mercearia, ela parou bruscamente.
- Está fechado! Mas ali tem um café!
E, soltando meu braço, atravessou a ruazinha quase correndo e, no meio da esquina, enquanto apontava, gritava:
- Venha! Veja a placa! É um café! Está logo ali, mas eu não vou te levar. Você vai ter que ir sozinho. Venha aqui que te mostro a placa.
Pegou no braço de novo, apontando, enquanto conferia se eu estava vendo:
- Você vai lá e come, depois você segue em frente, até encontrar uma seta amarela desenhada no chão.
Depois, apontando o dedinho na minha cara:
- Escuta! Não vá por outra estrada. Escutou bem? Eu já disse!
Eu comecei a andar no sentido indicado por ela. Mas ela não se deu por satisfeita. Sem parar de falar, ela me alcançou e ainda me levou até a metade da quadra. Depois, parou com as mãos na cintura e ficou apontando e dando ordem.
Eu caminhei um pouco, dei uma paradinha e perguntei.
- Mas você garante que por ali não tem fantasma?
Ela se estacou:
- Fantasma??
Eu disse.
- É... Cemitério! Mortos! Fantasma! BUUUH!
Ela faz um gesto, se virando.
- Bah!... Vá logo e não seja chato!
Quando eu já estava quase chegando na lanchonete, lá vem ela de novo:
- Espera! Espera que eu tenho que te mostrar uma coisa.
Me pegou de novo pelo braço e na virada da esquina, apontou no chão, quase tocando com o dedo, uma seta amarela:
- Olha aqui! Você tem que seguir sempre setas iguais a esta, entendeu?
Meu Deus! Há seis dias que só faço seguir essas setas. Mas achei engraçado, levei na esportiva e entrei para tomar meu café.
Pedi logo duas xícaras grandes de leite com chocolate engrossado e um croissant recheado com um delicioso creme de chocolate cremoso. Acho até que exagerei na quantidade, mas a fome era grande. Quando sai do café, vi de longe que a tal merceariazinha já estava aberta. Voltei e comprei umas frutas, uma lata de atum e peguei a estrada.
Já saindo do povoado, vi lá atrás, entrando no mesmo café, as duas italianas, mãe e filha, que encontrei no segundo dia de caminhada, em Villava. Naquele dia, quando encontrei as duas perdidas no meio das pastagens e a mãe muito nervosa, não acreditei que elas fossem conseguir ir muito além dali. Mas elas estão andando muito. Pelo jeito, logo estarão na minha frente.
E, lá atrás, vem elas. A mãe na frente, andando meio torta, mancando para a direita, mancando para a esquerda e aceleradas. A filha atrás. Estou tentando ir mais rápido para que elas não me alcancem, pois, a mãe, além de conversar o tempo todo, só fala em italiano, que eu não entendo bulhufas, e ainda fica me cobrando respostas. A filha até que fala um pouco de Inglês e, algumas vezes, até tenta traduzir alguma coisa, mas o Inglês dela é pior que o meu. Daí, fica aquele trem esquisito – um falatório cansativo e improdutivo. Vou sair fora.
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Igreja de Grañón
A catedral de Grañón é bonita, só que muito antiga. Talvez milenar. Alguns detalhes estão muito desgastados pelo tempo, com aspecto de ruínas. Parece até que a manutenção não está cuidando bem da construção ou, quem sabe, seja esse mesmo o aspecto original. Mas a arquitetura é muito interessante, constituída de pedras de granito lapidadas na base e pedras menores na elevação das paredes, com acabamento bem feito. Tirei várias fotografias externas e me dirigi para a porta principal, que estava apenas com uma fresta aberta, por onde verifiquei que a parte interna estava quase no escuro, sem lâmpadas acesas e, lá bem no meio, havia apenas uma pessoa sentada.
Tentei empurrar a porta, mas parece que estava emperrada e, enquanto eu insistia na tentativa de abrir um pouco para poder entrar, o rapaz que estava sentado lá dentro percebeu o ruído, se levantou rapidamente, me ajudou a abrir, puxando por dentro e voltou para o seu banco, cabisbaixo e em silêncio. Durante todo o tempo em que eu passeei pela igreja, vendo as pinturas, o altar e a sacristia, tirando fotos e fazendo minhas orações, aquele rapaz permaneceu da mesma forma, parado e em silêncio.
Quando eu entrei, achei que fosse o zelador da igreja, mas depois que minhas vistas se acostumaram à penumbra, percebi que se tratava de um rapaz muito bem aparentado e bem vestido, que estava ali meditando ou fazendo suas orações, muito compenetrado; ora de cabeça baixa, ora olhando fixamente para o altar, ora de olhos fechados.
Eu me dirigia para a saída quando ele se levantou devagar, caminhou na minha direção e perguntou:
- Você está indo para Santiago de Compostela?
- Sim! E você, é daqui da cidade? Perguntei.
- Não! Eu sou de uma cidade a pouco mais de 100 km daqui e vim aqui apenas para rezar e pedir forças a Deus. Estou aqui há dois dias e devo ficar até Deus me dar forças para superar a minha aflição.
Ao dizer isso, baixou os olhos. Eu não acreditaria, se não tivesse percebido tanta angústia nos gestos dele. Passar dois dias dentro de uma igreja antiga e escura, deve ser por uma razão muito grave. E ele continuou.
- Meu nome é Ignacio! Me desculpa por te interromper, mas eu só quero te pedir uma coisa, se não se importar.
- Pois não! Se estiver ao meu alcance, será uma satisfação!
- Só quero que reze por mim na sua caminhada e, quando chegar em Santiago, peça ao Santo que me dê consolo e me dê forças para prosseguir.
Eu tentei animá-lo.
- Pode ter certeza que a partir de hoje, em todas as minhas orações até Santiago, eu vou pedir por você.
Visivelmente abatido e emocionado ao mesmo tempo, ele segurou forte as minhas duas mãos e, insinuando um gesto de reverência, se curvando, disse:
- Muito Obrigado e vá com Deus, Peregrino! Que Santiago te proteja e te acompanhe no caminho e que ele ouça as suas orações, por nós dois.
Tentando esboçar um sorriso acanhado, disfarçando tanta tristeza, ele tentou se descontrair:
- Eu sei que no Brasil as pessoas se abraçam muito! Posso te dar um abraço de confraternização?
Sem responder, eu o abracei, apertando-lhe os ombros e disse:
- Deus nos abençoe!
Quando nos soltamos, seus olhos estavam inundados de lágrimas e ele se afastou repetindo o gesto de reverência, se curvando e se afastando mais a cada gesto, enquanto colocava a mão no peito e repetia.
- Obrigado! Vá com Deus! Obrigado! Vá com Deus!...
Ao sair da igreja, reparei que próximo à porta havia um único carro estacionado, uma Mercedes branca de alto padrão de luxo, com marcas de respingo de orvalho, indicando que estava parada ali, exposta ao tempo, havia alguns dias. Nesse momento, não pude evitar a emoção, imaginando o quanto deveria estar aflito o coração daquele pobre rapaz, independentemente de ter um padrão de vida alto, próspero, e de dispor de bens materiais tão valiosos.
Uma das grandes lições que o Caminho nos ensina e que tem um valor inestimável para a vida toda é a consciência de que tudo o que precisamos para viver pode ser levado nas costas, numa mochila pequena. E nada melhor para superar os sofrimentos, as aflições, as amarguras e mágoas que a vida nos impõem, do que seguir em frente e deixar tudo isso para trás, ainda que tenhamos que enfrentar dores terríveis, cansaço e desconforto enormes, fome e sede. Assim, sempre resta a esperança de que em nossa caminhada, possamos levar para longe, não só as nossas angústias, mas também as de outros que também sofrem. E, no final, cada etapa vencida, terá sido uma alegria vivida e uma gratificação recebida. Creio que esse conjunto de coisas, misturando metáforas com realidades cotidianas, deve ser a receita para a tal felicidade, de que tanto falam, que eu nem sei se existe. Mas é correndo atrás dela e enfrentando desafios que a vida faz valer a pena.


sábado, 9 de junho de 2018

Laura



O nome Laura está associado a vitória, triunfo e glória.
Sua origem mitológica vem de Laurus (do Latim) ou Dafne (do Grego), a Ninfa que personificava o espírito puro da feminilidade. Era Filha de Alfeu, o deus do rio, com Gea, a mãe-Terra.
Segundo a lenda, depois de ser atingido pela flecha do Cupido, o deus Apolo apaixonou-se perdidamente por Dafne (Laurus) e passou a importuná-la com galanteios insistentes.

Como forma de proteger a filha, Gea transformou-a numa linda árvore, que foi plantada ao lado de uma fonte que jorrava a mais pura água cristalina, proveniente do seio da Terra
Apolo, inconformado, passava os dias ali, tocando sua lira, com outras divindades que cantavam e declamavam poesias, na esperança de quebrar o encanto de Laurus. Sem sucesso, não restou a Apolo outra alternativa, senão contentar-se em usar uma coroa feita de suas folhas.
Foi justamente nesse lugar, ao pé do Monte Parnazo, que foi construído o Oráculo de Delphos, o mais sagrado santuário da mitologia grega e onde, até hoje, jorram fontes de água pura cristalina, irrigando belas e perfumadas árvores de Laurus, uma planta pertencente à família dos Loureiros, também conhecida como Louro, considerada sagrada e venerada na Grécia há mais 600 anos antes de Cristo.

Por isso, por tradição na Grécia, todos os artistas, sábios, cantores, poetas e atletas que se destacavam ou conquistavam uma vitória, eram coroados com um adorno confeccionada com folhas de Louro, simbolizando o triunfo da pureza da Ninfa.
Em Roma antiga, essa planta era também considerada sagrada. Por essa razão os imperadores usavam uma coroa feita com folhas de Louro, simbolizando a sua autoridade suprema, bem como a soberania, a glória e o triunfo do império sobre os que o desafiaram.
O nome foi incorporado ao Hebraico clássico, personificando a figura de um anjo guia, originalmente referenciado como Ma-Lach, que significa “meu anjo”, na transliteração de “Minha Laurus” ou “Minha Laura”.
Seguindo essa tradição, algumas culturas Judaico-Cristãs orientais fazem referência a um anjo de nome Laura que, com seu brilho, feito uma estrela, teria guiado os Reis Magos até onde Jesus Cristo nasceu e ali permanecera iluminando a manjedoura.
Atualmente Laura está incorporado como nome próprio feminino em praticamente todas as culturas e todos os idiomas ao redor do mundo, desde o Grego, Árabe, Alemão, Inglês e, sobretudo, nas línguas de origem latina.
Por conter esse significado lírico e enigmático, associado a fábulas e histórias mitológicas tão lindas e por ter uma sonoridade tão suave em qualquer idioma, escolhemos LAURA para ser o nome da nossa filha.

* Marcio Almeida é Engenheiro Mecânico e Engenheiro Industrial, Administrador de Empresas, MBA em Gestão Governamental e Ciência Política, Especialista em Informática, ex Diretor de Auditoria do Governo Federal, Ex Presidente de Processos Administrativos da Agência Nacional de Aviação Civil, Coordenador Geral de Modernização e Tecnologia nos Ministérios da Justiça e do Trabalho e Emprego, pesquisador autodidata em Nutrologia e Nutrição Esportiva, História e Sociologia, Meio-Maratonista, MM

quinta-feira, 17 de maio de 2018

Rascunho


INTRODUÇAO: o Treino
Hoje é 20 de julho de 2001, sexta feira. São 15:15hs da tarde e eu estou começando uma série de gravações para registrar minha viagem a Santiago de Compostela, na Espanha. Ainda faltam doze dias para a minha partida, mas eu resolvi fazer um primeiro teste com o equipamento e utensílios que eu vou usar na viagem. Eu comprei ontem a mochila, o saco de dormir, a capa, o cantil, a tralha toda que eu vou precisar na viagem, coloquei mais ou menos o equipamento recomendado para a viagem e hoje vou fazer o teste.
Sai de Brasília, da Quadra 116 Sul eu já estou caminhando há mais ou menos a 20 minutos, rumo à cidade de Brazlândia, que fica a cerca de 47 km daqui, que equivale a alguns dos trechos que se costuma fazer no Caminho de Santiago. Se eu conseguir chegar bem, isso quer dizer que estou pronto pra pegar a estrada na Espanha. Mas, caso eu tenha algum problema, de onde estiver eu ligo pro Valério me resgatar.
Hoje o Valério e o Alexandre Pintassilgo vão cantar na Pamonharia Mineira, que fica na chegada de Brazlândia e, segundo os meus cálculos, eu devo chegar por lá a tempo de tomar um banho, trocar de roupa – que estou levando aqui na mochila - e ir lá para a Pamonharia Mineira ver o show.
A minha expectativa é que eu consiga fazer bem, tanto esse treino de hoje pra Brazlândia, quanto o caminho de Santiago durante os 30, 35 ou 38 dias que eu devo gastar por lá. Para isso eu venho treinando, fazendo minhas corridas mais intensamente, numa média de três por semana, correndo entre oito e doze km, ao longo de pelo menos seis meses. Nas minhas viagens a trabalho, sempre tiro um dia pra fazer pelo menos uma corrida antes das reuniões de trabalho, mesmo que eu tenha que levantar de madrugada e perder o café da manhã no hotel. Nas últimas semanas, corri no Rio de Janeiro, em Fortaleza, Boa Vista e Porto Alegre. É bom que a gente vai experimentando climas, temperaturas e nível de oxigênio diferentes.
Com isso, eu creio que esteja com um bom preparo físico. Ainda conta a minha experiência de caminhada de Carmo do Paranaíba à cidade de Romaria, também conhecida como Água Suja, no Triângulo Mineiro, que eu fiz há cerca de um ano, em Agosto passado. Lá são 200 km de caminhada, que eu fiz em seis dias. Aliás, eu já tinha feito por outras duas vezes antes. A grande diferença entre Santiago e Romaria é que, na peregrinação a Santiago, além de ser uma distância quatro vezes maior, você tem que levar tudo o que precisa na mochila. Já em Minas, por tradição, há o pessoal de apoio. Quando se chega no acampamento, já está tudo prontinho: barraca armada, comida pronta, jeito pra tomar banho, etc.
São 4 horas da tarde e estou andando há uma hora e pouco. Meio decepcionado porque imaginei que estivesse ido mais longe com esse tempo. O sol está muito quente e, por isso, tentei não puxar muito o ritmo no início para não estressar. Mas essa hora de caminhada foi o suficiente pra fazer algumas constatações. Primeiro, é que a bota, aparentemente, é muito confortável! Não sinto nenhum desconforto em lugar nenhum do pé. Porém, a mochila, é bem provável que vá incomodar um pouco no ombro, onde se apoia a alça. Mas pode ser também que seja uma questão de me acostumar com ela.
Outra constatação é que eu o colete de pescador é um equipamento extremamente importante. Quando parei pra tomar água de coco, ali atrás, vi o quanto é prático, devido à quantidade de bolsos que ele tem. Não daria pra pegar o dinheiro, pagar, colocar a água de coco no cantil, e tantos outros movimentos, se não tivesse onde colocar o gravador, o tripé da máquina fotográfica e o canivete, por exemplo. Sem o colete com seus bolsos, seria um drama. Dá até para abrir e tirar essas coisas da mochila mas, depois, pra colocar de novo e fechar é muito complicado, muito trabalhoso. Então o colete evita isso e deixa as coisas mais necessárias bem a mão.
A propósito, por falar em água de coco, lembrei-me que este é um luxo que certamente não terei na Espanha. Rapidamente, por três Reais eu tomei uma água super gelada e despejei o conteúdo de outros três cocos no cantil. Uma delícia! Vou sentir falta disso.
Estou tomando o sol das quatro horas da tarde bem na cara! Puxei a aba do boné pra diminuir o desconforto e proteger o nariz. Me bateu um certo desânimo por causa disso. Não creio que seja cansaço físico. Mas, se por acaso o cansaço bater e eu não conseguir chegar a Brazlândia como eu esperava, pelo menos acho que vou ter uma desculpa: é que essa noite passada eu tive um sono curto. Dormi muito pouco. Talvez por ter ficado pensado muito na viagem, depois de ter comprado o equipamento ontem, a mochila ali, do lado ali da cama! Eu olhava pra mochila, ela olhava pra mim... Ontem à noite eu coloquei tudo o que era necessário dentro dela e me pareceu meio pesada demais. E, além disso, tenho ficado meio ansioso nos últimos dias, por causa disso tudo - expectativa da viagem, pensando no teste de hoje...
São 5:10 da tarde e estou com cerca de duas horas e meia de caminhada. A sensação é de que está rendando pouco. Queria ter andado mais. Nos últimos minutos senti alguns sinais de cansaço verdadeiro. A parte posterior da perna - panturrilha, desde a curva até o calcanhar, está ficando muito sensível. Talvez amanhã eu amanheça com isso tudo dolorido.
Há cerca de meia hora atrás eu passei por outro vendedor de coco, e resolvi aproveitar mais uma vez desse privilegio que, com certeza, não vou ter lá na Espanha, enquanto estiver fazendo o Caminho de Santiago. Enchi de novo o cantil, tomei mais um coco bem gelado, muito doce, que nem uma garapa. Quando comentei com o vendedor que estava amaciando as botas e experimentando o equipamento pra fazer a viagem a Santiago, ele se emocionou. Perguntou se se eu já tinha feito isso, disse que era uma coisa que já ouviu falar e que já havia lido a respeito e achou muito interessante. Ficou tão emocionado que me deu um coco a mais de brinde.
Pouco antes de chegar nessa barraquinha de coco, peguei uma vareta caída, que era usada para proteger um canteiro da avenida, aparei bem as pontas e saliências com meu canivete. Na barraca de coco, passei uma água pra tirar a fuligem e venho usando ela como cajado. É muito bom pra dar mais equilíbrio enquanto a gente anda e parece distribui o peso, aliviando as pernas.
São 5:40 hs da tarde. Estou saindo da área urbana de Taguatinga pra pegar a estrada de Brazlândia, com o sol ainda bem forte, diretamente no rosto. Daqui pra frente eu vou tentar me esforçar um pouco mais no ritmo de caminhada, pois o espaço mais livre da estrada vai me permitir uma caminhada contínua, sem interrupções.
Logo ali atrás, cruzei com uma mulher ali atrás, bem velhinha, mas com uma disposição danada pra andar. Usando um vestidão comprido, um pano amarrado na cabeça, um rosto bastante enrugado, aparentando ter próximo de 70 anos de idade. A fisionomia dela me lembrou muito a Narcisa, uma senhora que vivia na Fazenda Barreiro. Fiquei observando de longe e reparando que ela tinha um cacoete: ela pisca e balança a cabeça, pisca e balança a cabeça. Achei bem engraçado, uma figura bem exótica.
São 6:15 hs da tarde. Já é praticamente noite e por aqui é um trecho sem nenhuma urbanização, com Cerrado do lado e as as árvores da Floresta Nacional de Brasília logo ali, a uns cem metros da estrada. A alguns metros atrás uma senhora parou o carro no acostamento e desceu pra falar comigo. Era bem vestida, com um cinto largo, sapatos bons e estava acompanhada por uma garota adolescente negra – aparentemente uma ajudante dela. Me lembrou a mulher do Ronaldo Honório. Disse que me viu caminhando ainda em Taguatinga, quando vinha no sentido contrário, há algumas horas atrás e que foi até próximo de Brazlândia, voltou e se surpreendeu por me ver ainda andando pela estrada. Toda curiosa, veio me perguntar o que eu estava fazendo, andando tanto pela estrada. Expliquei que pretendia ir até Brazlândia. Ela recomendou que não andasse muito durante a noite, pois essa região pode ser perigosa. Mas eu disse que ia andar mais ou menos uns quarenta minutos e que ia chamar meu irmão pra me resgatar, dali a pouco e ela foi embora.
São sete horas da noite. São quase quatro horas e meia de caminhada e já é noite, com tudo totalmente escuro, à exceção dos faróis dos carros que passam por aqui. Acabei de tirar a lanterna da mochila e pendurei na alça da própria mochila, bem aqui na frente. Liguei pro Valério lá em Brazlândia, mas ele disse que ainda está na casa do Nenem, que deve emprestar os equipamentos de som para o show na Pamonharia. Disse que atrasou e que ele vai esperar mais um pouco pra ver se ainda haveria tempo pra instalar o equipamento.
São oito horas da noite, mais de cinco horas de caminhada. O Valerio acabou de me ligar dizendo que vem me pegar. Estou começando a descida para o trevo de Brazlândia. A mochila cheia nas costas, mas aparentemente parece que está tudo bem. Não tenho sinais de cansaço preocupantes. A noite escura, a estrada que liga Brasília a Brazlândia não me proporciona sensação de segurança – tudo muito ermo por aqui, apesar do tráfego de veículos muito intenso agora, nos dois sentidos –m noite de sexta feira por aqui é sempre assim.
Há cerca de duas horas atrás liguei para minhas filhas, que estão em viagem pra Carmo do Paranaíba. Falei com a Camila, que disse estar tudo bem. Aparentemente está felizinha. Quando ligo e sinto que estão bem, me sinto melhor. Não consegui falar com a Cintia, mas a Camila disse que está bem, num barzinho com uns amigos, muito comportadinha, toda bonitinha.
Essa caminhada solitária foi uma boa oportunidade de reflexão! Além de constatar que estou em ponto de bala para encarar o Caminho de Santiago, também me propiciou momentos de introspecção. Dá pra imaginar bem, com base nessa experiência, como será naqueles trechos desertos, de matas, aquelas trilhas medievais, longe da urbanização... Estou bastante entusiasmado e espero que seja uma viagem proveitosa. Espanha, me aguarde.



CAP. 1: Saint Jean Pied Port a ...
Hoje são 4 de agosto, 6:35 da manhã. Estou saindo da cidade de Saint Jean Pied Port, na França, começando a minha aventura rumo a Santiago de Compostela, com cerca de 830 km pela frente, que eu pretendo vencer a pé.
À minha frente a famosa Cordilheira dos Pirineus, um ermo de montanhas sucessivas que parecem não ter fim, nem em distância nem em altitude. Atrás de mim, a pequena Cidade francesa fundada na Idade Média. Apesar de muito bem limpinha e conservada, alguns prédios e pontes indicam que esta cidade deve ter mais de mil anos.
Ontem à noite, quando eu cheguei em Saint Jean, todos os refúgios e albergues de peregrinos já estavam fechados. Procurei também pelo escritório dos Associados do Caminho de Santiago para carimbar o meu passaporte Peregrino mas, como era mais de 10 horas da noite, estava fechado também.
Fiquei saracoteando pela rua para ver se encontrava alguém para me dar uma informação e também para arranjar alguma coisa para comer e, principalmente, um lugar pra dormir. Só encontrei uma espécie de trailler de lanches onde haviam rapazes bebendo e conversando. Tentei pedir informação, mas nenhum deles falava espanhol nem inglês e muito menos português. Eu desisti e saí meio enfezado, sem dar muita satisfação. Dizem que os franceses são assim: saem sem nem abanar o rabo. Então, eu devo ter saído à Francesa.
Eu já estava meio desesperado. Muito cansado, depois da maratona de quase 20 horas de viagem do Brasil até Madrid e depois da loucura para conseguir chegar a Pamplona e, ainda, da dificuldade para arranjar um taxi que me trouxesse até aqui.
Quando eu descia de volta a mesma rua que eu havia subido até o final da cidade, vi uma senhora, bem velhinha na janela de um casarão. Tentei conversar com ela e pedir informações e, apesar dela não ter entendido nada do que eu falei, pelo menos entendeu do que eu precisava. Desceu do primeiro andar, abriu a porta, apenas com gesto me chamou pra dentro, mostrou um quartinho, onde havia duas camas de campanha, dessa dobráveis. Apontou pra cama e, assim, deu pra entender que ela me daria pouso ali.
Era um casarão que não tinha menos que uns 200 anos de construção, com cheiro de mofo, apesar de estar aparentemente bem limpo. A iluminação muito fraca, mal dava para ver que a estrutura da casa era toda em madeira, inclusive o piso de assoalho, que rangia quando a gente andava.
Tentei conversar, perguntar se havia algum lanche e saber se ali era uma espécie de albergue ou pensionato, mas ninguém entendia nada. Nem eu nem ela. Ela também não falava nem inglês nem espanhol.
Daí, ela foi numa cristaleira antiga e pegou um pedaço de papel e uma caneta que escreveu e me mostrou. Eu olhei aquilo e achei que ela tivesse escrito o número 50 e deduzi que a velha estava me apresentando a conta, para pagamento do pernoite adiantado. Fui na mochila e comecei a vasculhar o dinheiro pensando se ela aceitaria pesetas ou dólar, pois eu nem sequer sabia qual era a moeda francesa. Peguei algumas notas e pus na mesa para ela me ajudar a separar o valor devido.
Mas a senhora começou a rir e eu desconfiei que estava cometendo alguma gafe. Com muita dificuldade, entendi que aquilo que ela havia escrito não era o número 50. Era o nome dela: JÔ. A letra J escrita por no papelzinho era exatamente igual ao número 5.
Já que eu estava com o dinheiro na mão e muito cansado de tanto tentar falar em outras línguas que eu nem sabia direito, pedi a ela pra aproveitar e já deixássemos pago.
Ela, vendo que eu tinha pesetas espanholas, fez uma continha e me mostrou que o valor seria mil e duzentos e pouco Pesetas, algo em torno de uns 15 reais."