quinta-feira, 17 de maio de 2018

Rascunho


INTRODUÇAO: o Treino
Hoje é 20 de julho de 2001, sexta feira. São 15:15hs da tarde e eu estou começando uma série de gravações para registrar minha viagem a Santiago de Compostela, na Espanha. Ainda faltam doze dias para a minha partida, mas eu resolvi fazer um primeiro teste com o equipamento e utensílios que eu vou usar na viagem. Eu comprei ontem a mochila, o saco de dormir, a capa, o cantil, a tralha toda que eu vou precisar na viagem, coloquei mais ou menos o equipamento recomendado para a viagem e hoje vou fazer o teste.
Sai de Brasília, da Quadra 116 Sul eu já estou caminhando há mais ou menos a 20 minutos, rumo à cidade de Brazlândia, que fica a cerca de 47 km daqui, que equivale a alguns dos trechos que se costuma fazer no Caminho de Santiago. Se eu conseguir chegar bem, isso quer dizer que estou pronto pra pegar a estrada na Espanha. Mas, caso eu tenha algum problema, de onde estiver eu ligo pro Valério me resgatar.
Hoje o Valério e o Alexandre Pintassilgo vão cantar na Pamonharia Mineira, que fica na chegada de Brazlândia e, segundo os meus cálculos, eu devo chegar por lá a tempo de tomar um banho, trocar de roupa – que estou levando aqui na mochila - e ir lá para a Pamonharia Mineira ver o show.
A minha expectativa é que eu consiga fazer bem, tanto esse treino de hoje pra Brazlândia, quanto o caminho de Santiago durante os 30, 35 ou 38 dias que eu devo gastar por lá. Para isso eu venho treinando, fazendo minhas corridas mais intensamente, numa média de três por semana, correndo entre oito e doze km, ao longo de pelo menos seis meses. Nas minhas viagens a trabalho, sempre tiro um dia pra fazer pelo menos uma corrida antes das reuniões de trabalho, mesmo que eu tenha que levantar de madrugada e perder o café da manhã no hotel. Nas últimas semanas, corri no Rio de Janeiro, em Fortaleza, Boa Vista e Porto Alegre. É bom que a gente vai experimentando climas, temperaturas e nível de oxigênio diferentes.
Com isso, eu creio que esteja com um bom preparo físico. Ainda conta a minha experiência de caminhada de Carmo do Paranaíba à cidade de Romaria, também conhecida como Água Suja, no Triângulo Mineiro, que eu fiz há cerca de um ano, em Agosto passado. Lá são 200 km de caminhada, que eu fiz em seis dias. Aliás, eu já tinha feito por outras duas vezes antes. A grande diferença entre Santiago e Romaria é que, na peregrinação a Santiago, além de ser uma distância quatro vezes maior, você tem que levar tudo o que precisa na mochila. Já em Minas, por tradição, há o pessoal de apoio. Quando se chega no acampamento, já está tudo prontinho: barraca armada, comida pronta, jeito pra tomar banho, etc.
São 4 horas da tarde e estou andando há uma hora e pouco. Meio decepcionado porque imaginei que estivesse ido mais longe com esse tempo. O sol está muito quente e, por isso, tentei não puxar muito o ritmo no início para não estressar. Mas essa hora de caminhada foi o suficiente pra fazer algumas constatações. Primeiro, é que a bota, aparentemente, é muito confortável! Não sinto nenhum desconforto em lugar nenhum do pé. Porém, a mochila, é bem provável que vá incomodar um pouco no ombro, onde se apoia a alça. Mas pode ser também que seja uma questão de me acostumar com ela.
Outra constatação é que eu o colete de pescador é um equipamento extremamente importante. Quando parei pra tomar água de coco, ali atrás, vi o quanto é prático, devido à quantidade de bolsos que ele tem. Não daria pra pegar o dinheiro, pagar, colocar a água de coco no cantil, e tantos outros movimentos, se não tivesse onde colocar o gravador, o tripé da máquina fotográfica e o canivete, por exemplo. Sem o colete com seus bolsos, seria um drama. Dá até para abrir e tirar essas coisas da mochila mas, depois, pra colocar de novo e fechar é muito complicado, muito trabalhoso. Então o colete evita isso e deixa as coisas mais necessárias bem a mão.
A propósito, por falar em água de coco, lembrei-me que este é um luxo que certamente não terei na Espanha. Rapidamente, por três Reais eu tomei uma água super gelada e despejei o conteúdo de outros três cocos no cantil. Uma delícia! Vou sentir falta disso.
Estou tomando o sol das quatro horas da tarde bem na cara! Puxei a aba do boné pra diminuir o desconforto e proteger o nariz. Me bateu um certo desânimo por causa disso. Não creio que seja cansaço físico. Mas, se por acaso o cansaço bater e eu não conseguir chegar a Brazlândia como eu esperava, pelo menos acho que vou ter uma desculpa: é que essa noite passada eu tive um sono curto. Dormi muito pouco. Talvez por ter ficado pensado muito na viagem, depois de ter comprado o equipamento ontem, a mochila ali, do lado ali da cama! Eu olhava pra mochila, ela olhava pra mim... Ontem à noite eu coloquei tudo o que era necessário dentro dela e me pareceu meio pesada demais. E, além disso, tenho ficado meio ansioso nos últimos dias, por causa disso tudo - expectativa da viagem, pensando no teste de hoje...
São 5:10 da tarde e estou com cerca de duas horas e meia de caminhada. A sensação é de que está rendando pouco. Queria ter andado mais. Nos últimos minutos senti alguns sinais de cansaço verdadeiro. A parte posterior da perna - panturrilha, desde a curva até o calcanhar, está ficando muito sensível. Talvez amanhã eu amanheça com isso tudo dolorido.
Há cerca de meia hora atrás eu passei por outro vendedor de coco, e resolvi aproveitar mais uma vez desse privilegio que, com certeza, não vou ter lá na Espanha, enquanto estiver fazendo o Caminho de Santiago. Enchi de novo o cantil, tomei mais um coco bem gelado, muito doce, que nem uma garapa. Quando comentei com o vendedor que estava amaciando as botas e experimentando o equipamento pra fazer a viagem a Santiago, ele se emocionou. Perguntou se se eu já tinha feito isso, disse que era uma coisa que já ouviu falar e que já havia lido a respeito e achou muito interessante. Ficou tão emocionado que me deu um coco a mais de brinde.
Pouco antes de chegar nessa barraquinha de coco, peguei uma vareta caída, que era usada para proteger um canteiro da avenida, aparei bem as pontas e saliências com meu canivete. Na barraca de coco, passei uma água pra tirar a fuligem e venho usando ela como cajado. É muito bom pra dar mais equilíbrio enquanto a gente anda e parece distribui o peso, aliviando as pernas.
São 5:40 hs da tarde. Estou saindo da área urbana de Taguatinga pra pegar a estrada de Brazlândia, com o sol ainda bem forte, diretamente no rosto. Daqui pra frente eu vou tentar me esforçar um pouco mais no ritmo de caminhada, pois o espaço mais livre da estrada vai me permitir uma caminhada contínua, sem interrupções.
Logo ali atrás, cruzei com uma mulher ali atrás, bem velhinha, mas com uma disposição danada pra andar. Usando um vestidão comprido, um pano amarrado na cabeça, um rosto bastante enrugado, aparentando ter próximo de 70 anos de idade. A fisionomia dela me lembrou muito a Narcisa, uma senhora que vivia na Fazenda Barreiro. Fiquei observando de longe e reparando que ela tinha um cacoete: ela pisca e balança a cabeça, pisca e balança a cabeça. Achei bem engraçado, uma figura bem exótica.
São 6:15 hs da tarde. Já é praticamente noite e por aqui é um trecho sem nenhuma urbanização, com Cerrado do lado e as as árvores da Floresta Nacional de Brasília logo ali, a uns cem metros da estrada. A alguns metros atrás uma senhora parou o carro no acostamento e desceu pra falar comigo. Era bem vestida, com um cinto largo, sapatos bons e estava acompanhada por uma garota adolescente negra – aparentemente uma ajudante dela. Me lembrou a mulher do Ronaldo Honório. Disse que me viu caminhando ainda em Taguatinga, quando vinha no sentido contrário, há algumas horas atrás e que foi até próximo de Brazlândia, voltou e se surpreendeu por me ver ainda andando pela estrada. Toda curiosa, veio me perguntar o que eu estava fazendo, andando tanto pela estrada. Expliquei que pretendia ir até Brazlândia. Ela recomendou que não andasse muito durante a noite, pois essa região pode ser perigosa. Mas eu disse que ia andar mais ou menos uns quarenta minutos e que ia chamar meu irmão pra me resgatar, dali a pouco e ela foi embora.
São sete horas da noite. São quase quatro horas e meia de caminhada e já é noite, com tudo totalmente escuro, à exceção dos faróis dos carros que passam por aqui. Acabei de tirar a lanterna da mochila e pendurei na alça da própria mochila, bem aqui na frente. Liguei pro Valério lá em Brazlândia, mas ele disse que ainda está na casa do Nenem, que deve emprestar os equipamentos de som para o show na Pamonharia. Disse que atrasou e que ele vai esperar mais um pouco pra ver se ainda haveria tempo pra instalar o equipamento.
São oito horas da noite, mais de cinco horas de caminhada. O Valerio acabou de me ligar dizendo que vem me pegar. Estou começando a descida para o trevo de Brazlândia. A mochila cheia nas costas, mas aparentemente parece que está tudo bem. Não tenho sinais de cansaço preocupantes. A noite escura, a estrada que liga Brasília a Brazlândia não me proporciona sensação de segurança – tudo muito ermo por aqui, apesar do tráfego de veículos muito intenso agora, nos dois sentidos –m noite de sexta feira por aqui é sempre assim.
Há cerca de duas horas atrás liguei para minhas filhas, que estão em viagem pra Carmo do Paranaíba. Falei com a Camila, que disse estar tudo bem. Aparentemente está felizinha. Quando ligo e sinto que estão bem, me sinto melhor. Não consegui falar com a Cintia, mas a Camila disse que está bem, num barzinho com uns amigos, muito comportadinha, toda bonitinha.
Essa caminhada solitária foi uma boa oportunidade de reflexão! Além de constatar que estou em ponto de bala para encarar o Caminho de Santiago, também me propiciou momentos de introspecção. Dá pra imaginar bem, com base nessa experiência, como será naqueles trechos desertos, de matas, aquelas trilhas medievais, longe da urbanização... Estou bastante entusiasmado e espero que seja uma viagem proveitosa. Espanha, me aguarde.



CAP. 1: Saint Jean Pied Port a ...
Hoje são 4 de agosto, 6:35 da manhã. Estou saindo da cidade de Saint Jean Pied Port, na França, começando a minha aventura rumo a Santiago de Compostela, com cerca de 830 km pela frente, que eu pretendo vencer a pé.
À minha frente a famosa Cordilheira dos Pirineus, um ermo de montanhas sucessivas que parecem não ter fim, nem em distância nem em altitude. Atrás de mim, a pequena Cidade francesa fundada na Idade Média. Apesar de muito bem limpinha e conservada, alguns prédios e pontes indicam que esta cidade deve ter mais de mil anos.
Ontem à noite, quando eu cheguei em Saint Jean, todos os refúgios e albergues de peregrinos já estavam fechados. Procurei também pelo escritório dos Associados do Caminho de Santiago para carimbar o meu passaporte Peregrino mas, como era mais de 10 horas da noite, estava fechado também.
Fiquei saracoteando pela rua para ver se encontrava alguém para me dar uma informação e também para arranjar alguma coisa para comer e, principalmente, um lugar pra dormir. Só encontrei uma espécie de trailler de lanches onde haviam rapazes bebendo e conversando. Tentei pedir informação, mas nenhum deles falava espanhol nem inglês e muito menos português. Eu desisti e saí meio enfezado, sem dar muita satisfação. Dizem que os franceses são assim: saem sem nem abanar o rabo. Então, eu devo ter saído à Francesa.
Eu já estava meio desesperado. Muito cansado, depois da maratona de quase 20 horas de viagem do Brasil até Madrid e depois da loucura para conseguir chegar a Pamplona e, ainda, da dificuldade para arranjar um taxi que me trouxesse até aqui.
Quando eu descia de volta a mesma rua que eu havia subido até o final da cidade, vi uma senhora, bem velhinha na janela de um casarão. Tentei conversar com ela e pedir informações e, apesar dela não ter entendido nada do que eu falei, pelo menos entendeu do que eu precisava. Desceu do primeiro andar, abriu a porta, apenas com gesto me chamou pra dentro, mostrou um quartinho, onde havia duas camas de campanha, dessa dobráveis. Apontou pra cama e, assim, deu pra entender que ela me daria pouso ali.
Era um casarão que não tinha menos que uns 200 anos de construção, com cheiro de mofo, apesar de estar aparentemente bem limpo. A iluminação muito fraca, mal dava para ver que a estrutura da casa era toda em madeira, inclusive o piso de assoalho, que rangia quando a gente andava.
Tentei conversar, perguntar se havia algum lanche e saber se ali era uma espécie de albergue ou pensionato, mas ninguém entendia nada. Nem eu nem ela. Ela também não falava nem inglês nem espanhol.
Daí, ela foi numa cristaleira antiga e pegou um pedaço de papel e uma caneta que escreveu e me mostrou. Eu olhei aquilo e achei que ela tivesse escrito o número 50 e deduzi que a velha estava me apresentando a conta, para pagamento do pernoite adiantado. Fui na mochila e comecei a vasculhar o dinheiro pensando se ela aceitaria pesetas ou dólar, pois eu nem sequer sabia qual era a moeda francesa. Peguei algumas notas e pus na mesa para ela me ajudar a separar o valor devido.
Mas a senhora começou a rir e eu desconfiei que estava cometendo alguma gafe. Com muita dificuldade, entendi que aquilo que ela havia escrito não era o número 50. Era o nome dela: JÔ. A letra J escrita por no papelzinho era exatamente igual ao número 5.
Já que eu estava com o dinheiro na mão e muito cansado de tanto tentar falar em outras línguas que eu nem sabia direito, pedi a ela pra aproveitar e já deixássemos pago.
Ela, vendo que eu tinha pesetas espanholas, fez uma continha e me mostrou que o valor seria mil e duzentos e pouco Pesetas, algo em torno de uns 15 reais."




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