sábado, 4 de agosto de 2018

Castildelgado e Grañón


Castildelgado
Menos de dois quilômetros depois, cheguei no minúsculo povoado de Castildelgado. Logo na entrada, vinha uma senhora, já bastante idosa, magrinha, caminhando rápido do outro lado da rua, e perguntei qual a direção eu tinha que tomar para seguir o Caminho. Ela parou com a mão na cintura e fez um gesto pedindo para eu me aproximar. Andei um pouco na direção dela e parei no meio da rua, esperando a explicação. Muito séria e calada, ela repetiu o gesto, como quem diz: “Chega mais”. Cheguei até no limite do meio fio e pensei: “Será que ela é doida? Se ela não falar agora, eu vou embora! Não vou subir nesse meio fio”. Mas ela apontou para a calçada, me ordenando que subisse. Curioso pra ver onde ia chegar aquele encenação, subi, e ela, apontando para a estra de onde eu tinha chegado, perguntou:
- Porque você veio por esse caminho?
E eu respondi:
- Porque achei que fosse mais perto.
- Você passou pelo caminho errado. Tem um caminho melhor, que não passa pela estrada de carros. O caminho certo é pelo cemitério, onde não tem perigo de você ser atropelado. Por onde você veio é perigoso. Peregrino não deve andar nessa estrada.
De fato, eu tinha visto uma placa lá atrás, indicando duas alternativas. Mas eu acho que escolhi a que indicava distância menor.
Supondo que ela fosse uma brincalhona, eu fiz uma careta de espanto e caçoei:
- Não! Isso é loucura! Eu tenho medo de cemitério. Está cheio de mortos. Vai que um levanta e pula na minha frente e BUUUH.
Ela apenas ameaçou um sorrisinho meio sarcástico, mas sem perder o ar de autoritária, me pegou pelo braço e foi me puxando, dizendo:
- Venha. Vou e mostrar por onde você tem que ir agora.
E eu, pra manter o clima, perguntei:
- Por aí não tem cemitério, não, né?
Ela só me olhou e continuou me puxando e falando:
- Não é para ir por onde você estava indo. Venha, vou te mostrar a direção certa.
E lá vou eu pela cidade adentro, atravessando aquelas ruazinhas estreitas, puxado por aquela velhinha acelerada e mandona.
- Você vai descer por ali! Lá na frente tem a saída! Siga por lá. Não vire à direita, senão você vai sair na estrada dos carros!
E, toda autoritária, soltou meu braço e apontou:
- Vá!
- Mas eu quero comer alguma coisa primeiro!
De novo, ela me pegou pelo braço.
- Venha!
E, com aquele passo miúdo e acelerado, começou a me puxar de novo, para outra direção. A essa altura eu já estava dando risadas e ela, séria, continuava me guiando pelo braço.
- Por aqui tem um supermercado.
Ao virar a esquina, diante de uma portinha pequena de mercearia, ela parou bruscamente.
- Está fechado! Mas ali tem um café!
E, soltando meu braço, atravessou a ruazinha quase correndo e, no meio da esquina, enquanto apontava, gritava:
- Venha! Veja a placa! É um café! Está logo ali, mas eu não vou te levar. Você vai ter que ir sozinho. Venha aqui que te mostro a placa.
Pegou no braço de novo, apontando, enquanto conferia se eu estava vendo:
- Você vai lá e come, depois você segue em frente, até encontrar uma seta amarela desenhada no chão.
Depois, apontando o dedinho na minha cara:
- Escuta! Não vá por outra estrada. Escutou bem? Eu já disse!
Eu comecei a andar no sentido indicado por ela. Mas ela não se deu por satisfeita. Sem parar de falar, ela me alcançou e ainda me levou até a metade da quadra. Depois, parou com as mãos na cintura e ficou apontando e dando ordem.
Eu caminhei um pouco, dei uma paradinha e perguntei.
- Mas você garante que por ali não tem fantasma?
Ela se estacou:
- Fantasma??
Eu disse.
- É... Cemitério! Mortos! Fantasma! BUUUH!
Ela faz um gesto, se virando.
- Bah!... Vá logo e não seja chato!
Quando eu já estava quase chegando na lanchonete, lá vem ela de novo:
- Espera! Espera que eu tenho que te mostrar uma coisa.
Me pegou de novo pelo braço e na virada da esquina, apontou no chão, quase tocando com o dedo, uma seta amarela:
- Olha aqui! Você tem que seguir sempre setas iguais a esta, entendeu?
Meu Deus! Há seis dias que só faço seguir essas setas. Mas achei engraçado, levei na esportiva e entrei para tomar meu café.
Pedi logo duas xícaras grandes de leite com chocolate engrossado e um croissant recheado com um delicioso creme de chocolate cremoso. Acho até que exagerei na quantidade, mas a fome era grande. Quando sai do café, vi de longe que a tal merceariazinha já estava aberta. Voltei e comprei umas frutas, uma lata de atum e peguei a estrada.
Já saindo do povoado, vi lá atrás, entrando no mesmo café, as duas italianas, mãe e filha, que encontrei no segundo dia de caminhada, em Villava. Naquele dia, quando encontrei as duas perdidas no meio das pastagens e a mãe muito nervosa, não acreditei que elas fossem conseguir ir muito além dali. Mas elas estão andando muito. Pelo jeito, logo estarão na minha frente.
E, lá atrás, vem elas. A mãe na frente, andando meio torta, mancando para a direita, mancando para a esquerda e aceleradas. A filha atrás. Estou tentando ir mais rápido para que elas não me alcancem, pois, a mãe, além de conversar o tempo todo, só fala em italiano, que eu não entendo bulhufas, e ainda fica me cobrando respostas. A filha até que fala um pouco de Inglês e, algumas vezes, até tenta traduzir alguma coisa, mas o Inglês dela é pior que o meu. Daí, fica aquele trem esquisito – um falatório cansativo e improdutivo. Vou sair fora.
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Igreja de Grañón
A catedral de Grañón é bonita, só que muito antiga. Talvez milenar. Alguns detalhes estão muito desgastados pelo tempo, com aspecto de ruínas. Parece até que a manutenção não está cuidando bem da construção ou, quem sabe, seja esse mesmo o aspecto original. Mas a arquitetura é muito interessante, constituída de pedras de granito lapidadas na base e pedras menores na elevação das paredes, com acabamento bem feito. Tirei várias fotografias externas e me dirigi para a porta principal, que estava apenas com uma fresta aberta, por onde verifiquei que a parte interna estava quase no escuro, sem lâmpadas acesas e, lá bem no meio, havia apenas uma pessoa sentada.
Tentei empurrar a porta, mas parece que estava emperrada e, enquanto eu insistia na tentativa de abrir um pouco para poder entrar, o rapaz que estava sentado lá dentro percebeu o ruído, se levantou rapidamente, me ajudou a abrir, puxando por dentro e voltou para o seu banco, cabisbaixo e em silêncio. Durante todo o tempo em que eu passeei pela igreja, vendo as pinturas, o altar e a sacristia, tirando fotos e fazendo minhas orações, aquele rapaz permaneceu da mesma forma, parado e em silêncio.
Quando eu entrei, achei que fosse o zelador da igreja, mas depois que minhas vistas se acostumaram à penumbra, percebi que se tratava de um rapaz muito bem aparentado e bem vestido, que estava ali meditando ou fazendo suas orações, muito compenetrado; ora de cabeça baixa, ora olhando fixamente para o altar, ora de olhos fechados.
Eu me dirigia para a saída quando ele se levantou devagar, caminhou na minha direção e perguntou:
- Você está indo para Santiago de Compostela?
- Sim! E você, é daqui da cidade? Perguntei.
- Não! Eu sou de uma cidade a pouco mais de 100 km daqui e vim aqui apenas para rezar e pedir forças a Deus. Estou aqui há dois dias e devo ficar até Deus me dar forças para superar a minha aflição.
Ao dizer isso, baixou os olhos. Eu não acreditaria, se não tivesse percebido tanta angústia nos gestos dele. Passar dois dias dentro de uma igreja antiga e escura, deve ser por uma razão muito grave. E ele continuou.
- Meu nome é Ignacio! Me desculpa por te interromper, mas eu só quero te pedir uma coisa, se não se importar.
- Pois não! Se estiver ao meu alcance, será uma satisfação!
- Só quero que reze por mim na sua caminhada e, quando chegar em Santiago, peça ao Santo que me dê consolo e me dê forças para prosseguir.
Eu tentei animá-lo.
- Pode ter certeza que a partir de hoje, em todas as minhas orações até Santiago, eu vou pedir por você.
Visivelmente abatido e emocionado ao mesmo tempo, ele segurou forte as minhas duas mãos e, insinuando um gesto de reverência, se curvando, disse:
- Muito Obrigado e vá com Deus, Peregrino! Que Santiago te proteja e te acompanhe no caminho e que ele ouça as suas orações, por nós dois.
Tentando esboçar um sorriso acanhado, disfarçando tanta tristeza, ele tentou se descontrair:
- Eu sei que no Brasil as pessoas se abraçam muito! Posso te dar um abraço de confraternização?
Sem responder, eu o abracei, apertando-lhe os ombros e disse:
- Deus nos abençoe!
Quando nos soltamos, seus olhos estavam inundados de lágrimas e ele se afastou repetindo o gesto de reverência, se curvando e se afastando mais a cada gesto, enquanto colocava a mão no peito e repetia.
- Obrigado! Vá com Deus! Obrigado! Vá com Deus!...
Ao sair da igreja, reparei que próximo à porta havia um único carro estacionado, uma Mercedes branca de alto padrão de luxo, com marcas de respingo de orvalho, indicando que estava parada ali, exposta ao tempo, havia alguns dias. Nesse momento, não pude evitar a emoção, imaginando o quanto deveria estar aflito o coração daquele pobre rapaz, independentemente de ter um padrão de vida alto, próspero, e de dispor de bens materiais tão valiosos.
Uma das grandes lições que o Caminho nos ensina e que tem um valor inestimável para a vida toda é a consciência de que tudo o que precisamos para viver pode ser levado nas costas, numa mochila pequena. E nada melhor para superar os sofrimentos, as aflições, as amarguras e mágoas que a vida nos impõem, do que seguir em frente e deixar tudo isso para trás, ainda que tenhamos que enfrentar dores terríveis, cansaço e desconforto enormes, fome e sede. Assim, sempre resta a esperança de que em nossa caminhada, possamos levar para longe, não só as nossas angústias, mas também as de outros que também sofrem. E, no final, cada etapa vencida, terá sido uma alegria vivida e uma gratificação recebida. Creio que esse conjunto de coisas, misturando metáforas com realidades cotidianas, deve ser a receita para a tal felicidade, de que tanto falam, que eu nem sei se existe. Mas é correndo atrás dela e enfrentando desafios que a vida faz valer a pena.


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